Trechos de Não Sou Uma Dessas
As experiências de Lena Dunham resultaram em uma obra afiada, hilária e bem escrita. Como a própria autora descreveu, trata-se de um balanço das escolhas (algumas não tão boas) que a conduziram à vida adulta. Confira alguns trechos de Não Sou Uma Dessas.
Trecho 1 Lena DunhamTenho 20 anos e me odeio. Meu cabelo, meu rosto, o formato da minha barriga. A maneira como minha voz soa hesitante e meus poemas soam piegas. A maneira como meus pais falam comigo num tom ligeiramente mais formal do que o que usam com minha irmã, como se eu fosse uma funcionária pública surtada e que, se for pressionada demais, talvez exploda os reféns que deixei amarrados no porão.
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Trecho 2 Lena DunhamDissimulo esse ódio com um tipo de autoaceitação agressiva. Pinto o cabelo de amarelo fluorescente e faço um corte estilo "mullet", mais inspirada nas fotografias de mães adolescentes dos anos 1980 do que em qualquer tendência atual. Uso uma roupa de elastano brilhante que ressalta todas as minhas gorduras. Tenho uma briga horrorosa com minha mãe quando decido vestir uma miniblusa com estampa de bananas e leggings cor-de-rosa para ir ao Vaticano, e turistas devotos fazem cara feia e viram as costas.
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Trecho 3 Lena DunhamEstou morando num alojamento que foi, não muito tempo atrás, um asilo para idosos de baixa renda e não gosto de pensar onde eles devem estar agora. Minha colega de quarto se mudou para Nova York para explorar a culinária feita com produtos locais e o lesbianismo, então estou sozinha, num apartamento de um quarto no térreo -um fato que aprecio até que, certa noite, uma jogadora de rúgbi arranca a porta de tela das dobradiças e irrompe alojamento adentro para atacar sua namorada infiel. Comprei um videocassete e agulhas de tricô e passo a maioria das noites no sofá, tricotando meio cachecol para um garoto de quem gosto que teve um surto maníaco e largou a faculdade. Fiz dois curtas-metragens, os quais meu pai considerou "interessantes, mas irrelevantes", e meu bloqueio criativo está tão ruim que comecei a traduzir poemas escritos em línguas que não falo, um tipo de exercício surrealista que supostamente vai me inspirar, mas também vai evitar que eu tenha aqueles pensamentos perversos e recorrentes que surgem do nada: sou horrorosa; vou estar internada num hospital psiquiátrico quando tiver 29 anos; nunca vou ser alguém.
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Trecho 4 Lena DunhamVocê não diria isso se me visse numa festa. No meio da multidão, sou imprudentemente alegre, muito bem-vestida com roupas de brechó e unhas postiças, lutando contra o sono provocado pelos 350 miligramas de remédios que tomo todas as noites. Danço feito louca, rio feito louca de minhas próprias piadas e faço referências superficiais à minha vagina, como se ela fosse um carro ou uma cômoda. Peguei mononucleose ano passado e nunca me curei totalmente. De vez em quando, uma das minhas glândulas fica do tamanho de uma bola de golfe e sobressai no meu pescoço como um dos pinos que mantêm inteiro o corpo do monstro de Frankenstein.
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Trecho 5 Lena DunhamTenho amigas: um grupo simpático de garotas cujas paixões (fazer bolos, montar álbuns de flores prensadas, fazer trabalho social) não me empolgam. Eu me sinto culpada por isso, uma sensação de que minha inabilidade para me sentir à vontade com elas prova, de uma vez por todas, que não sirvo para nada. Rio, concordo, encontro razões para voltar para casa mais cedo. Tenho a sensação incômoda de que minhas "verdadeiras" amigas estão me esperando depois da faculdade: mulheres incomuns cujas ambições são tão grandes quanto suas transgressões passadas, cujos penteados atingem as alturas, dramáticos como a topiaria dos jardins de Versalhes e que nunca, jamais dizem "eu não precisava saber disso" quando alguém menciona um sonho erótico que teve com o próprio pai.
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Trecho 6 Lena DunhamMas eu também me sentia assim no ensino médio, com a certeza de que o "meu" grupo era de outro lugar, tinha outro destino e me reconheceria se me visse. Eles gostariam tanto de mim que não faria diferença se eu gostasse de mim mesma. Eles veriam as coisas boas em mim para que eu pudesse vê-las também.
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Trecho 7 Lena DunhamAos sábados, minhas amigas e eu nos esprememos no Volvo velho de alguém e vamos para um brechó, onde compramos bugigangas que cheiram às vidas de outras pessoas e roupas que acreditamos que tenham o poder de melhorar as nossas próprias. Todas nós queremos parecer personagens de alguma sitcom da nossa juventude, as adolescentes que admirávamos quando ainda éramos crianças. As calças nunca me servem, a menos que eu vá para a seção de grávidas, então acabo comprando vestidos do tipo saco e suéteres iguais aos que Bill Cosby usava no programa dele.
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Trecho 8 Lena DunhamEm alguns dias, a carga é pesada: um terno anos 1980 cor de pêssego e com manchas de café quase imperceptíveis; leggings com correntes "trompe l´oeil" nas laterais; um par de botas feitas sob medida para alguém com pernas de comprimentos diferentes. Mas, em outros dias, a busca rende pouco. Os achados de sempre, como tênis Keds genéricos estampados e camisolas rasgadas, já foram arrematados. Nesses casos, passeio na seção de livros, onde as pessoas descartam seus guias para obter um divórcio melhor e seus manuais de artesanato, às vezes até álbuns de recortes e de fotografias da família.
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Trecho 9 Lena DunhamDou uma olhada na prateleira empoeirada, que parece a coleção de livros de uma família infeliz e talvez até analfabeta. Ignoro os conselhos sobre como enriquecer depressa, me detenho rapidamente na autobiografia de Miss Piggy, contemplo um livro chamado "Sisters: The Gift of Love" [Irmãs: o dom do amor]. Mas quando pego uma velha edição de bolso com as laterais quase verdes de tão amareladas, paro. "Having It All" [Como ter tudo], de Helen Gurley Brown, que aparece na capa apoiada numa escrivaninha arrumada e vestindo o tipo de terno cor de ameixa com ombreiras que passei a usar de forma irônica, cheia de pérolas e sorriso de quem sabe tudo.
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Trecho 10 Lena DunhamGasto os 65 centavos necessários para levar o livro para casa. No carro, mostro o exemplar às minhas amigas como se fosse uma piada decorativa, algo para minha prateleira de troféus "kitsch" e fotos de estúdio de crianças desconhecidas. Esse é o nosso hobby, a apropriação de objetos significativos para outras pessoas e a exibição deles como prova de quem nunca seremos. Mas sei que devorarei esse livro e, quando chego em casa, vou direto para a cama, tremendo embaixo da colcha de patchwork, com uma tempestade de neve rodopiando no estacionamento do lado de fora da janela.
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Trecho 11 Lena DunhamO livro é de 1982 e, na folha de rosto, há uma dedicatória, escrita com caneta esferográfica: "Para Betty! Com amor, Margaret, sua amiga de Optifast :) ". Isso me comove, a ideia de que o livro foi dado por uma mulher a outra, em algum grupo bem antigo de apoio à perda de peso. Amplio a mensagem dela mentalmente: "Betty, vamos conseguir". Estamos "conseguindo". "Que este livro leve você para as estrelas e além."
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Trecho 12 Lena DunhamDurante uma semana, volto correndo para casa todos os dias depois da aula para devorar os ensinamentos de Helen. Estou maravilhada pela forma como, em "Having It All", Gurley Brown compartilha suas diversas humilhações e ocasionais triunfos e explica, com a precisão de um Guia do Idiota, como você também pode ser abençoada com "amor, sucesso, sexo e dinheiro, mesmo que comece do nada".
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Trecho 13 Lena DunhamA maior parte dos conselhos, vale notar, é pura loucura. Ela incentiva as leitoras a comer menos de mil calorias por dia ("dietas radicais são aceitáveis, jejum também [...] Saciedade está fora de questão. Você precisa se sentir um pouco desconfortável e faminta enquanto perde peso ou, provavelmente, não está perdendo nada"), evitar ter filhos se puder e estar disposta a chupar o seu parceiro o tempo inteiro ("quanto mais sexo você fizer, mais conseguirá suportar"). Helen tem pouca tolerância com o livre-arbítrio nesse departamento: "Exaustão, preocupação com um problema, cólicas menstruais -nada é desculpa para não fazer amor, a menos que você esteja tão zangada com o homem na sua cama a ponto de revirar os olhos e ranger os dentes".
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Trecho 14 Lena DunhamAlguns dos conselhos dela são um pouco mais razoáveis: "Sempre vá para o aeroporto 15 minutos mais cedo do que você poderia. Isso evitará o desgaste das suas válvulas"; ou "Se você tem problemas pessoais sérios, acho que deve procurar um psiquiatra para obter conselhos e apoio. Não consigo conceber a diferença entre não receber cuidados para uma cabeça e umcoração machucados e andar pelas ruas com sangue jorrando de sua garganta...". Mas sua sabedoria franca perde parte de seu poder porque é forçada a ocupar o mesmo espaço que pérolas como "para mim, evitar totalmente os homens casados quando se está solteira seria como recusar primeiros socorros em um hospital de Tijuana quando se está sangrando até a morte porque prefere um hospital americano imaculado, bem distante e do outro lado da fronteira".
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Trecho 15 Lena Dunham"Having It All" é dividido em seções, e cada uma delas é uma jornada a algum aspecto em geral sacrossanto da vida feminina, como dietas, sexo ou as complexidades do casamento. No entanto, apesar de suas teorias dementes, que não se encaixam nem um pouco na minha criação fervorosamente feminista, aprecio a forma como Helen compartilha sua história cheia de constrangimentos e de acne escondida numa tentativa de dizer "Olha, felicidade e satisfação podem acontecer com todo mundo". No processo, ela revela as próprias fraquezas (um trecho sobre comer "baklava" até passar mal ficou gravado na minha mente), mas talvez eu a tenha subestimado. Talvez isso não seja uma obra do acaso, mas, na verdade, seu dom.
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Trecho 16 Lena DunhamQuando encontrei o livro dela, ainda não sabia qual posição Helen Gurley ocupava no cânone, nem que ela havia sido objeto da análise e das críticas de mulheres que viriam a me inspirar, como Gloria Steinem e Nora Ephron. Não sabia que ela era a pedra no sapato tanto do movimento feminista quanto da patrulha moralista, ou que ainda estava viva e com quase 90 anos, ainda espalhando para as oprimidas os conselhos alegres e superficiais que se tornaram sua marca.
Tudo o que eu sabia era que Helen pintou um quadro da vida que se tornou muito mais interessante por ela já ter sido, em suas palavras, uma caidinha: feia, nada especial, sem graça. Para ela, em última análise, caidinhas são as mulheres que prevalecerão, que sobreviverão para contar suas histórias de serem desprezadas e pouco amadas. É uma perspectiva oportunista, mas eu precisava dela mais que tudo. Talvez, como Helen prega, uma mulher confiante, poderosa e, sim, até mesmo sexy possa ser construída, e não necessariamente nasça assim. Talvez.
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Trecho 17 Lena DunhamNão há nada mais corajoso para mim do que uma pessoa anunciar que sua história merece ser contada, sobretudo se essa pessoa é uma mulher. Por mais que tenhamos trabalhado muito e por mais longe que tenhamos chegado, ainda existem muitas forças que conspiram para dizer às mulheres que nossas preocupações são fúteis, que nossas opiniões não são relevantes, que não dispomos do grau de seriedade necessário para que nossas histórias tenham importância. Que a escrita pessoal feminina não passa de um exercício de vaidade e que nós deveríamos apreciar esse novo mundo para mulheres, sentar e calar a boca.
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Trecho 18 Lena DunhamMas eu quero contar minhas histórias e, mais do que isso, "preciso" fazê-lo para manter minha sanidade mental: histórias sobre o despertar para o meu corpo feminino adulto e sobre sentir nojo e pavor. Sobre ter minha bunda apalpada num estágio, precisar provar meu valor numa reunião cheia de cinquentões e ir a um evento de gala com o antissocial mais ranzinza que já se viu. Sobre me permitir ser tratada pelos homens de formas que eu sabia que eram erradas.
Histórias sobre minha mãe, minha avó, sobre o primeiro cara que amei e que virou semigay e sobre a primeira garota que amei e que virou minha inimiga. E, se eu puder lançar mão do que aprendi e tornar qualquer tarefa mais fácil para você ou evitar que você faça o tipo de sexo em que ache melhor nem tirar os tênis para o caso de querer sair correndo durante o ato, então cada passo em falso que dei terá valido a pena. Já estou prevendo a vergonha que sentirei por ter pensado que tinha algo a oferecer, mas também uma glória futura, caso eu evite que você experimente um desses sucos detox caríssimos ou que pense que é culpa sua quando a pessoa com quem você está saindo se afasta de repente, intimidada com a clareza de sua missão pessoal aqui na Terra. Não, não sou nutricionista, psicóloga ou especialista em sexo.
Não tenho três filhos, nem sou a proprietária de uma franquia bem-sucedida de roupa íntima. Mas sou uma garota com um grande interesse em ter tudo o que quero e, nas próximas páginas, apresento relatos das linhas de frente dessa batalha.
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Não Sou Uma DessasLena Dunham, a premiada criadora, produtora e estrela da série Girls - da HBO -, apresenta uma coleção de relatos pessoais hilários e dolorosamente sinceros.
Comparada a Woody Allen e anunciada pelo New York Times como "a voz de sua geração", Lena é conhecida pela polêmica que desperta e por sua forma única e excêntrica de se expressar e encarar a vida.
Engajada, a autora revela suas opiniões sobre sexo, amor, solidão, carreira, dietas malucas e a luta para se impor num ambiente dominado por homens com o dobro da sua idade.
"Já estou prevendo a vergonha que sentirei por ter pensado que tinha algo a oferecer".
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