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Poemas de Mia Couto

Reunimos os melhores poemas de Mia Couto para você se encantar por seu trabalho. Não perca tempo e ocupe seus olhos e sua mente com uma boa leitura.

05/07/1955
Para Ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida.


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A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e a flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo.
Só me resta água nos lábios
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz,
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu
Um rio se vai aguando até ser mar.


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Companheiros

Quero
escrever-me de homens,
quero
calçar-me de terra,
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho.

E quando ficar sem mim,
não terem escrito
senão por vós,
irmãos de um sonho.
Por vós
que não sereis derrotados.

Deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros,

Mas não lego
mapa nem bússola,
por que andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver.

Hei-de inventar
um verso que vos faça justiça.

Por ora
basta-me o arco-íris,

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos,
mas que permaneceis sem preço.

Companheiros


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Destino

À ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos.

Vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso.

Conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso.

Agora
que mais
me poderei vencer?


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Diz Meu Nome

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça.

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno.

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci.

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos.

No úmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.


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Beijo

Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra na rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos;
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.


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Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia.

Pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia.

Fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei.

Eu vi
a árvore morta
e soube que mentia.


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Horário do Fim

Morre-se nada
quando chega a vez.

É só um solavanco
na estrada por onde já não vamos.

Morre-se tudo
quando não é o justo momento.

E não é nunca
esse momento


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O Amor, Meu Amor

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.


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Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo.

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta.

Sou pólen sem inseto.

Sou areia sustentando
o sexo das árvores.

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro.

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.


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Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo.

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio.

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces.


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Saudade

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés.

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta.

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.


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